domingo, agosto 09, 2009

Visão de surfista...

Nasceu e cresceu na praia. Antes de caminhar, gatinhou até à beira mar e provou areia com água salgada, que lhe soube melhor que a terra dos vasos lá de casa. Pôs-se de pé, pela primeira vez, numa praia de areia fina e dourada, num dia ameno de Primavera: com os pés desnivelados, um numa cova, outro num pequeno monte de areia, lutou pelo equilíbrio que nunca mais perdeu. A primeira corrida, foi com água pelos tornozelos, a fugir de uma onda que o apanhou de surpresa, quando se deixava hipnotizar pelo balançar do Atlântico. Estreou-se a apanhar ondas, na véspera do primeiro dia de aulas na escola primária. Os pais acharam que o momento era oportuno. Estava vento, frio e mais ninguém na água. Oportuníssimo. Afinal, se gostasse disto, Pedro ia adorar todos os outros dias de surf. De pés roxos e queixo a tremer, disse: “Só mais uma, pai! Só mais uma!” O pai encheu o peito de orgulho, a mãe sentiu os olhos salgados. Tinha 7 anos e meio quando aproveitou um agueiro para chegar mais depressa às ondas, guiado pelo seu instinto e pelos conselhos do professor de surf com quem passava as tardes de Sexta-feira e as manhãs de Domingo. Com uma década de existência e 4 anos de surf, pediu: “Pai, posso entrar no campeonato de surf?”

Com o mesmo espírito com que jogava à bola no recreio da escola, entrou na água com a lycra larga, sem ponta de nervosismo e pronto para driblar os adversários e marcar golos. O troféu do terceiro lugar na categoria sub-12, guardou-o junto dos brinquedos, ao lado da fotografia no pódio, abraçado aos amigos com quem partilhou o espaço dedicado aos vencedores daquele dia. Ainda hoje olha para essa imagem, agora arquivada num álbum azul, aquele azul quase negro do Atlântico, com uma ponta de nostalgia. Logo ao lado, na página seguinte, o auto retrato dele e da namorada com quem partilhou o primeiro pôr-do-sol visto de cima de uma prancha, sem obstáculos, só a linha do horizonte a definir princípios e fins. Tinham os dois dezasseis anos e a certeza da juventude eterna. Aos 18, decidiu que precisava de conhecer o mundo. Adiou a faculdade e foi trabalhar para Londres, depois Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos... e só parou 5 anos depois, quando uma estranha saudade da sua praia natal se sobrepôs à vontade de conhecer mais lugares, pessoas e ondas.

Voltou a estudar, arranjou um emprego em part time, alugou uma casa tão perto quanto possível da linha da maré. Com o curso terminado quase ao mesmo tempo que os amigos de liceu, percebeu que tinha abdicado de 5 anos de farra e dolce fare pouco por um mundo de experiências, e sentiu na boca um travo a vitória. Com um filho a caminho, aos 30 casou-se e correu sérios riscos de se tornar uma pessoa séria. Divorciou-se aos 33. Tomou a decisão no dia em que percebeu que tinha tempo para ver televisão mas não para surfar. Ela não percebeu, ele não soube explicar, o que é perfeitamente normal. Duas décadas depois, preza a companhia do filho, da filha, e da ex-mulher. Eles acham-lhe piada, “pareces um puto”, costumam dizer-lhe. Ele acha-lhes piada e sente-se realmente um puto, com excepção dos dias de mar mais furioso, em que já lhe vai faltando o fôlego.

Mudou várias vezes de emprego, umas porque os horários davam-lhe cabo das matinais, outras porque o patrão não aceitava a sua falta de ambição, outras ainda porque sentia que precisava de mudar de ares, algo que também nunca soube explicar. Tem uma situação económica estável, uma casa pequena mas confortável com uma varanda onde pode sentir o cheiro da maresia, um carro velho o suficiente para não se incomodar com a areia, novo quanto baste para não parar a meio caminho do surf. Preserva um grupo heterogéneo de bons amigos, que em conversas animadas o levam a passear por outros mundos, à semelhança dos livros que vai lendo e onde descansa a cabeça do trabalho no computador. Certezas na vida, percebeu finalmente que só tem uma: surfista para sempre.

Ricardo Bravo (texto e foto) (Editorial Surf Europe, 66 Junho 2009)

Fonte: Ondas

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